Nós nos damos, mas não bastamos - Jornal Cruzeiro do Vale

Nós nos damos, mas não bastamos

05/11/2013 10:43

? Ainda que se eu me voltasse inteiramente a ti, isso não seria suficiente para aplacar o tanto que pedes de mim. E o que me dás nunca me bastou. Eu quero mais. Estamos sempre a nos exigir um do outro, a nos fazer credores e devedores do que não receberemos ou pagaremos. ? Mas, penso igual, sem mais, sem menos. Ainda que tivéssemos vontade de nos dar, seria uma vã pretensão. ? Como se nos sonegássemos... ? Não creio que tu ou eu escondamos nada. É que somos seres desejantes... Sempre no gerúndio.

? Nos daríamos só como intenção? Não nos damos o suficiente? ? Rsrs... Se somos desejo antes de sermos doação... É assim que somos. Por que nos declarar de outra maneira? ? Mas todos pedimos e nos prometemos. ? Creio que nos pedimos além da conta. E quem se dá, pretende-se com crédito. E cobra. ? Concordo... Mas será que quem recebe não faz esses cálculos? Não percebe essas coisas todas? ? Duvido das contabilidades amorosas.

? Quem recebe, pois, para ti, é culpado? ? Não vejo culpas... Nem vejo doações. No fundo, ninguém se dá a ninguém. ? Mas essa é a ideia que se tem de amor: amor é doação. ? Ah!, nós somos vontades, não doações. ? Mas as pessoas me parecem tão sinceras quando se declaram para o outro. Até se declaram do outro. ? Eu creio nessa sinceridade. É uma sinceridade, ademais, tocante. Mas é uma sincera declaração que não se cumprirá. É impossível realizá-la.

? Vivemos, então, uma enganação, por menos, um faz de contas? ? Não! Não acredito que as pessoas se proponham a enganar ou a enganarem-se. ? Mas há os enganos, tanto que há cobranças... E não se pagam as dívidas... Sobram os conflitos. ? Penso que nos fazemos reciprocamente promessas, promovemos expectativas, concedemo-nos créditos. Isso é insustentável. ? Nos propomos o insustentável. ? É mesmo insustentável: prometemo-nos sem nos poder entregar.

? As declarações de amor... Não acreditas nas declarações de amor?! ? Espírito enlevado, emoções arrebatadas. Seria puro encantamento. Mas, aí, estragamos: criamos rituais pomposos de elaborar promessas. A doidice é tratar emoções como se fossem contratos. As intenções de amor viram obrigações, dívidas, então, cobranças. O que sobra de afeição, se cada qual é, já, um devedor? Se cada qual é, já, um credor? Eu é que te pergunto sobre as declarações de amor.

? Declarações de amor... Falaste intenções de amor. Prefiro. Elas estão no nosso nos dar e no nosso nos querer, não? ? Rsrs... Está... Estão. Mas estão só no tanto que nos podemos dar e que nos podemos querer, não mais. ? Eu quero... Compreendo os limites e quero a aventura da tentativa. ? Se antes me pagas uma conta, tentemos. ? Está, pago... Que me exiges? ? Não muito, não pouco: Bolero, Cortázar:

?Que vaidade imaginar que posso te dar tudo, o amor e a felicidade, itinerários, música, joguinhos. A verdade é assim: meu tudo eu te dou, é verdade, mas meu tudo não te basta, como não me basta que me dês teu tudo. Por isso nunca seremos o casal perfeito, o cartão postal, se não formos capazes de aceitar que apenas na aritmética o dois nasce de um mais um. Por aí um papelzinho que diz: sempre foste meu espelho, quero dizer que para me ver tinha que te olhar. E este fragmento: a lenta máquina do desamor, as engrenagens do refluxo, os corpos que abandonam os travesseiros, os lençóis, os beijos. E de pé diante do espelho interrogando-se, cada qual a si mesmo, e não se mirando entre si, e já não nus para o outro, já não te amo, meu amor.?


Léo Rosa de Andrade - Doutor em Direito pela UFSC, psicólogo e jornalista

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