Por todo aquele verão - Jornal Cruzeiro do Vale

Por todo aquele verão

15/05/2012 09:08


Era tarde da noite. Vinha embora pensando nos meus pecados, imaginando outros melhores para cometer. Faz alguns anos. No caminho da minha casa de praia, passa-se por uma cidadezinha, sempre deserta nas melhores horas para se viver. Deparo com um veículo mal estacionado, capô aberto, tendo ao lado uma moça. O automóvel estava na minha mão de ida, mas, por precaução, encosto no outro lado da rua.

Olho, mas não falo nada por uns instantes. Por fim, baixo o vidro e pergunto se há necessidade de ajuda. Ouço que não, que está tudo bem. Respondo com tranquila firmeza: ?olhe, eu não vou saltar do carro sem a sua permissão; se a senhora necessita de auxílio, diga que eu fico, se disser para eu ir embora, eu vou. E pense antes de responder.? Logo veio: ?em nome de Deus, me ajude.?

Desembarquei, permaneci quieto por um instante, olhei para a mulher, sorri e falei: ?desculpe, mas nós estamos em um impasse: a senhora quer que eu a ajude em nome de Deus; eu me disponho a ajudá-la, mas por modesta solidariedade humana. Não quero intermediar interesses divinos, isso sempre acaba em briga.? Com olhos arregalados, questionou com censura: ?o senhor não tem religião??

Dei de ombros e disse: ?olhe, a senhora acha mesmo importante ter uma?? Aí, confesso, a resposta me surpreendeu: ?ai, o Senhor escreve mesmo por linhas tortas; mandou-me um pecador.? Mas me refiz: ?bem, uma pessoa que crê tem sempre uma primeira tarefa: converter o incrédulo. Então, vamos deixar esse carro como está porque, parece, a tarefa é sua, a senhora é que tem que me socorrer.?

O susto agora foi dela: ?será?? Mas nisso percebo que no banco de trás do automóvel dormia uma criança. Fui olhar a placa do carro. Estávamos nas praias de Santa Catarina, ela vinha do interior do Rio Grande do Sul. Manifesto minha repreensão: ?mas a senhora está vindo de muito longe, sozinha com uma criança, e a estas horas da noite.? A mulher não titubeou: ?quem confia no Senhor não tem o que temer.?

Meio irritado, meio divertido, forcei uma cara séria e intimei-a: ?a senhora pecou de modo feio há pouco tempo?? A mulher me devolveu outra interrogação: ?por que?? Falei com severidade: ?oras, porque! Porque o seu Deus acaba de quebrar o seu carro e mandou um sujeito que não entende nada de mecânica para ajudar. Quem sabe a senhora faz umas orações e ele mesmo conserta? Sou inútil aqui. Vou indo?

As coisas caíram nos termos terrenos. A mulher implorou: ?por favor, não me deixe aqui?. Vingado, suavizei, mas continuei na terra: ?olha, um humano decente jamais a abandonaria nesta situação; como posso ajudá-la?? Esclareceu, sem apelos ao divino: ?meus familiares me procuram... Eu não conheço aqui, e antes que pudesse explicar onde me encontro, fiquei sem bateria.? Liguei, expliquei, prometi não me ir.

Esperamos um bocado. Detalhei ainda duas vezes o caminho para nos localizar. Já estava irritado, mas cumpri o dever de ficar. Finalmente chegaram os parentes. Saltou o tio. Agradeceu-me muito em nome do Senhor. Cansado, não contrapus um único som. Aí, saltou a prima. Era um encanto. Com graça e sabedoria elucidou as razões celestiais de eu estar ali. Então, por todo aquele verão, eu me converti.

Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicólogo e Jornalista.
Professor da Unisul.

 

Edição 188

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