Crise da UERJ: o governo está secando a seiva da vida intelectual e artística do Rio de Janeiro. - Jornal Cruzeiro do Vale

Crise da UERJ: o governo está secando a seiva da vida intelectual e artística do Rio de Janeiro.

26/01/2017

Já se disse quase tudo e se fez de tudo em termos de crítica, de manifestações  de professores, alunos, artistas e intelectuais no sentido de salvar um dos patrimônios culturais mais caros à cidade do Rio de Janeiro: a Universidade do Rio de Janeiro, fundada em 1950. Quero ater-me a um testemunho pessoal dos anos em que fui professor de ética e de filosofia da religião naquela Universidade que teve a generosidade de me oferecer uma cátedra logo após aminha condenação ao “silêncio obsequioso”pelas autoridades doutrinais do Vaticano. Poteriormente ingressei por concurso público. Mas antes vale recordar uma política exemplar vinda de Cuba.

A dissolução política da União Soviética que apoiava economicamente Cuba nos quadros de uma política de solidariedade, seguiu-se formidável crise generalizada, pois a nova Rússia não tinha mais condições de ajudar o país. Entregou-o à própria sorte. Tudo foi duramente reduzido e reajustado. Mas dois campos ficaram intocáveis: a saúde e a educação. Aí se mantiveram todos os investimentos necessários. É conhecido o alto nível da educação  e da saúde de Cuba. A razão era óbvia: um povo doente e ignorante nunca poderá levar avante qualquer projeto nacional.

Pois não é isso que ocorre no Brasil. Cortou-se na saúde e na educação. Parece que a falta de educação e de saúde obedece àlógica da dominação das classes endinheiradas e do Estado refém de suas estratégias. É mais fácil explorar um povo ignorante e doente que sadio e educado. Muito do analfabetismo e dessasistência sanitária têm raízes políticas, o que é eticamente desumano e politicamente perverso.

Assistir à derrocada da UERJ, uma das melhores universidades do país, com méritos em quase todos os campos do saber e da pesquisa, a primeira a abrir-se à política de cotas face à carência de pobres e negros, é aceitar que se mate a seiva da criatividade e se feche ohorizonte de um futuro da atual geração de estudantes e de professores. Bemdizia Celso Furtado em seu “O longo amanhecer: “Uma sociedade só se transforma se tiver capacidade de improvisar, de ter ou não acesso à criatividade: eis a questão”(1999,p.67). O quecaracterizava a UERJ era e continua sendo sua criatividade, sua abertura a fronteiras novas, seja ligadas a pesquisa de ponta em várias áreas técnicas e na saúde –a primeira a introduzir a medicina integral – seja sua articulação com as bases populares com cursos de extenção na formação de liderenças,  em  direito social e educação em direitos humanos em vários município, sua atuação corajosa nos conflitos de terras.

Aceitei ser professor nesta universidade à condição de que minhas aulas fossem abertas a quem quisesse das comunidades e de outros interessados. Sempre havia representantes das bases que animavam as discussões, pois eles não falam palavras, falam coisas. Minha preocupação em filosofia era levar os estudantes a pensar com suas própriascabeças e tomar como temas de tese realidades brasileiras. Não basta saber o que Aristóteles,  Heidegger, Habermas, Bergson, Deleuse ou Gatarri sabiam. Importa pensar o que sabemos. Daí nasceram teses brilhantes, como, por exemplo, uma sobre o profeta Gentileza, outra sobre espiritualidade nos tempos modernos no diálogo com a psicologia analítica de C.G. Jung. Uma estudante grávida deveria observar-se nas várias fases da gravidez e fazer uma leitura filosófica-fenomenológica no sentido de vida que ia se revelando nela. Produziu um texto, digno de publicação. Exemplos entre outros tantos.

 Contudo, o que mais me impressionou nesta Universidade da qual trago as melhores lembranças e cujo nome levei atodos os países nos quais dei paletras e cursos, na Rússia, na China e até entre os samis (esquimós) perto do polo norte, foi o ambiente de abertura e de representação do que é o Brasil real, com a presença de estudantes vindos das classes populares da Baixada Fluminese, a coexistência sem qualquer discriminação entre negros e brancos, a orientação social de todo o ensino da Universidade, com forte acento na construção de uma nação livre, criativa, soberana e insubmisa às lógicas da dominação. Há que recordar a resistência da UERJ à ditadura militar com a morte de um estudante pelos órgãos de repressão .

O lema das manifestações é “luto e luta”: luto pela agonia deste centro de excelência e luta para garantir sua existência contra o sucateamento e sua eventual privatização. Salvar a UERJ é  garantir a seiva da vida intelectual e artística da cidade e permitir que o Brasil inteiro se beneficie com seus serviços sérios e excelentes.

Comentários

Deixe seu comentário


Seu e-mail não será divulgado.

Seu telefone não será divulgado.