Desígnios - Jornal Cruzeiro do Vale

Desígnios

01/07/2014 12:00

O restaurante não mudou muito desde a última vez em que estive aqui, há quatro anos. Não consigo reconhecer os garçons (nunca fui bom fisionomista), mas tenho certeza de que o uniforme é o mesmo. As mesas, com suas grandes cadeiras estofadas e toalhas de cores sóbrias, assim como o cardápio com capa de couro, são exatamente como me lembro. Pedi o mesmo prato que escolhi em janeiro de 2010: sanduíche Olímpico. Repeti também a bebida, um suco natural, porém feito em escala industrial, de goiaba.  Meu lanche chegou acompanhado dos primeiros acordes de Broadway Bossa Nova, de Dave Brubeck, e me perguntei se o pianista seria o mesmo que tocou uma canção do Pink Floyd naquela ocasião. Optei por uma mesa encostada no pilar revestido de marmorite negro, de modo que era impossível avistar o piano.

O salão estava com metade de suas mesas ocupada. Alguns tomavam café da tarde em companhia de outras pessoas. Outros, como eu, comiam acompanhados apenas por seus pensamentos. Os meus enchiam a mesa e se esparramavam pelo chão. Pensava, entre outras coisas, na estranheza do fato de eu me encontrar neste restaurante depois de anos, neste cenário tão igual e tão familiar, cheio de lembranças (frequentei-o por quinze dias seguidos) álacres e singulares, apesar de carregadas com as preocupações naturais àquele momento. De forma incomum estou revivendo aqueles distantes dias, agora com sensações tão díspares e ofendidas.

(Insensatez, está tocando o pianista. Penso na feliz ideia de quem contratou um músico para tocar no restaurante deste hospital). Acho que foi Wood Allen quem disse: Para fazer Deus rir é só contar seus planos a Ele. Talvez tenha sido Deus que tenha me trazido a este lugar novamente, embora eu tivesse outros planos para esta semana, e duvido muito que Ele esteja rindo deles. Sei que nossos projetos Lhes são muito caros, mas muitas vezes precisamos deixar um pouco de lado as nossas vontades para atendermos a Seus desígnios. Por isso suporto, e não me queixo.

O musicista está executando agora uma peça que não conheço. Termino meu lanche, recolho meus pensamentos e vou pagar a conta. Do balcão do bar consigo divisar o piano e o pianista, o mesmo garoto magrelo e cabeludo que tocava na ocasião do nascimento da Marina. Elogiei o seu trabalho ao passar por ele com um quase inaudível ?bela música?. Ele respondeu com um aceno de cabeça e um meio sorriso, mas duvido que tenha se lembrado de mim, mesmo que tenhamos conversado por alguns minutos sobre música naquele 2010. Compreende-se. Muita gente ocupou as mesas deste restaurante durante esses quatro anos. Visitantes, acompanhantes, médicos e até pacientes. Muitos ouviram a música deste piano enquanto amainavam a fome, organizavam pensamentos ou simplesmente, como eu, conversavam com Deus. Como escreveu Cervantes na fala de Sancho: Onde há música não pode haver coisa má.

Maurício Pons - Escritor
 

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